7 de abril de 2014

Um nó, um laço

"- Pensando em quê? – perguntei.
- Nada não – respondeu evasivo.
- Tem certeza de que não quer falar?
- Não. Apenas não sei se devo – Vicente desprendeu-se de mim e me jogou de lado. Olhava pra mim aflito.
- Fale, uai. Independente do que seja, vai ficar segurando isso pra quê? 
- Quer ser meu namorado? – falou decido. Nos olhos, o olhar vivo do capoeirista do farol."


Fiquei estático de puro choque. Vicente fez a pergunta com toda a confiança que eu não conseguiria reunir nem daqui a mil anos. Ele me olhava à espera de uma resposta que não se formulava em minha cabeça. Depois de ocupar boa parte dos meus pensamentos nos últimos dias, Vicente agora havia me encurralado o coração. Confesso que aquele negro de trancinhas miúdas mexia comigo de uma forma especial e surpreendentemente misteriosa, dado a rapidez das nossas intenções – por vezes, libidinosas. 

Por segundos que pareceram eternos, fixei meu olhar na sua expressão apreensiva que tanto me inquietava o juízo. O breve silêncio que se instaurou entre nós desmanchou o sorriso espontâneo de esperança que ele sustentava no rosto. 

- Então... eu sei que você deve tá elaborando uma declaração pra dizer o quanto você esperava por isso, mas eu deixo você responder apenas “sim”.

Ele me pressionava com um jeito perspicaz e quase convencido, mas sem evitar que seus olhos transparecessem o arrependimento de ter dado um passo em falso. 

- Ok, esquece o que eu disse. Tô sendo impulsivo e precipitado mais uma vez – Vicente desviou o olhar, abaixando a cabeça, arrependido. Em minha mente, frase alguma ganhava forma, nem mesmo a resposta de apenas três palavras pela qual ele esperava.
- Você me pegou de surpresa, eu não sei o que te responder – eu disse, por fim.
- Você não gosta de mim da mesma forma que eu gosto de você, não é mesmo? Tudo bem, isso já não é nenhuma novidade em minha vida. Acontece!
- Não é bem assim. Eu gosto de você. Bem mais do que você imagina, eu aposto. Mas sabe, eu não posso te responder isso. Não agora – falei como se me desculpasse por não saber o que responder, como se aquilo fizesse de mim um canalha de alto escalão. 
- Por que não? E quando é que você vai poder me responder? Depois que a gente transar por mais duas ou três vezes e você perceber que eu não sou mesmo o ideal de homem que você procura pra dividir a vida? – ele falava ofendido, em um tom quase agressivo.
- Ei, eu não sou esse tipo de cara que você tá desenhando aí não! Primeiro que não é o sexo que vai dizer se você é ou não o meu “ideal de homem”. Você provou se enquadrar nesse meu “ideal” muito antes de eu experimentar seu corpo esta noite. E é por perceber isso que eu preciso organizar tudo aqui dentro – apontei com o dedo o coração – pra entender se esse seria o momento certo de dar um passo assim tão importante.

- Não consigo te entender, Flávio. Se você gosta de mim assim do jeito que diz, qual o problema então?
- Não existe problema, Vicente. Entenda! Mas existe um medo imenso de me tornar seu e não conseguir ser inteiro da forma como eu acho que você merece que eu seja. Eu sei que você não tem culpa do que vivi e muito menos merece sentir os reflexos dos meus relacionamentos frustrados, mas se eles ainda me afetam, eu preciso achar um jeito de superá-los antes de entrar de cabeça numa relação.
- Todo mundo tem suas frustrações, Flávio, mas de que adianta deixar de viver o presente com medo de que os resquícios do passado interfiram nele de algum modo? Eles sempre existirão, cabe a você saber ignorar, oras!

Ele tentava argumentar com a voz firme, mas sabia que nem mesmo seu olhar de quase súplica me faria entender para onde meu coração pretendia me levar. Eu só precisava de um tempo. Não para pesar os prós e os contras de uma possível relação com Vicente, mas para respirar fundo e procurar aceitar a ideia que se formava. Eu queria dizer sim, só precisava ter certeza disso.

- Tudo bem, eu vou te dar um tempo – Vicente falou em seguida como se lesse minha mente. Eu não quero te pressionar, mas também não quero que você fique comigo sem ter certeza dos seus sentimentos.

Ele me beijou a testa num gesto de compreensão e depois a minha boca. Ainda estávamos sem roupa, deitados na cama, e já recuperados do cansaço anterior, transamos mais uma vez. Eu já não tirava da cabeça o pedido que ele havia me feito, e, enquanto ele me mordia a orelha, um sorriso no meu rosto escondia as imagens de um namoro bem sucedido que se projetavam na minha cabeça.

Vicente foi embora por volta das três da manhã, mesmo depois de eu tanto insistir para que ele ficasse. Disse que precisava estar de pé logo cedo e, se permanecesse comigo, tinha certeza absoluta de que não iria dormir, logo, se atrasaria. Em vista dos argumentos, deixei que ele partisse. A última coisa que eu pretendia fazer era dormir, muito menos com um cara como ele do meu lado na cama. Assim que nos despedimos e ele tomou o elevador, corri de volta ao meu quarto e liguei para Mateus. Minha cabeça ainda fervilhava e eu precisava de uma opinião confiável, mesmo já sabendo que decisão tomar. O celular chamou por duas vezes e a terceira foi interrompida pela voz de Mateus e um barulho constante que me pareceu o quebrar de ondas no mar.

- Oi, Flavinho – a voz de Mateus parecia estranha, mas abafada pelo barulho ao fundo.
- Mateus? Onde você tá, menino, que barulho é esse? Você tá bem? – perguntei, tomado de uma súbita preocupação que me fez até mesmo esquecer por um momento o motivo da minha ligação.
- Calma, Flavinho, eu tô bem sim. Vim andar um pouquinho pela orla. Precisava pensar um pouco.
- Mateus, isso não são horas de andar sozinho pela orla! Tá doido? Quer ser assaltado? – a perspectiva de ver Mateus em choque após mais um assalto me embrulhou o estômago. O que aconteceu? Pegue um táxi e volte pra casa, garoto!
- Cara, relaxa, eu tô bem... De verdade. Só precisava ficar sozinho um pouco. Daqui a pouco eu volto, não precisa se preocupar. Eu sei me cuidar – ele falava tentando disfarçar a voz embargada. – Você não deveria estar trepando com o Vicente agora? – perguntou quase em tom de cobrança.
- Ah, é... Vicente. Por isso que eu liguei. Ele acabou de sair daqui.
- E não rolou nada?
- Rolou até demais. 
- Como assim?
- Ele me pediu em namoro.
- Olha! Parabéns, Flavinho. Que notícia ótima!
- Mateus, calma, eu não disse que aceitei.
- Não? Você tá absolutamente de quatro pelo Vicente, ele te pede em namoro e você não aceita? Tá louco? 
- Ai, Mateus, eu travei na hora. Juro! Não soube o que dizer.
- Mas você não gosta dele?
- Gosto, mas tive medo de responder assim de supetão. Precisava pensar melhor pra aceitar a ideia. 
- Enquanto você pensa demais alguma bicha atrevida deve tá dando em cima dele querendo furar teu olho. Se você gosta dele, largue de ser mané e se amarre logo de vez.
- Você não existe, Mateus! 

Mateus não disse nada e deixou que o barulho do mar respondesse por ele que certamente precisava de um colo.

- Teus, vem pra casa... Aconteceu alguma coisa com você. 
- Não foi nada, Flavinho. Mas eu já tô voltando. Quando eu chegar, a gente conversa.
- Vou ficar te esperando. Tome cuidado. Um beijo.
- Beijo. Daqui a pouco eu tô aí. 

Ele chegou em casa quase vinte minutos depois, os pés sujos de areia e uma cara de quem sentia no coração um aperto incomum. “Deixa eu tomar um banho rapidinho e a gente conversa”, falou enquanto seguia em direção ao seu quarto. Esperei por ele na sala enquanto respondia a última mensagem que Vicente havia me enviado: “Ainda sinto seu gosto na minha boca. Nosso ‘jantar’ foi incrível”. 

Mateus saiu do quarto e sentou ao meu lado no sofá. Ainda secava o cabelo com a toalha sem se preocupar com a desordem que os movimentos descompassados causariam. Ele riu ao me olhar e feito criança cantarolou “tá namorando! tá namorando!” sem se importar com a tempestade em seu próprio peito. “Babaca”, falei em resposta, e rimos um do outro como se ambos tivéssemos dez anos. Mas então o silêncio que se seguiu nos fez lembrar que as preocupações bobas de criança ficaram em um passado que já parecia distante.

- Sou todo ouvidos, ombro e coração – falei enquanto acarinhava uma de suas mãos.
- Acho que preciso terminar com Lucas. Definitivamente, nossa relação acabou e eu estou segurando algo por ele e não por nós dois – falou com segurança, como quem diz algo de peito aberto, ainda que doendo, mas com a certeza do que era necessário fazer.
- Você esteve com ele essa noite? Vocês se desentenderam de novo? Como foi parar na praia a essa hora? – desatei a perguntar.
- Não, ele nem está na cidade. Talvez outras pessoas e situações sejam capazes de nos ler melhor do que qualquer briga, Flavinho – ficou em silêncio enquanto encarava a almofada que estava em seu colo.
- A relação de vocês já andava um pouco desgastada com todas aquelas crises de ciúmes. Mas depois daquelas revelações, sei lá, achei que você tivesse reconsiderado uma segunda chance.
- E reconsiderei. Por ele. Me dói ver tudo que ele passou, mas já não consigo segurar tudo isso por ele, sabe? Aproveitei que você ia jantar com Vicente aqui e fui visitar Pedro, conhecer o apartamento. Foi por lá que eu estive durante boa parte da noite – um meio sorriso estampou o rosto de Mateus enquanto ele falava de Pedro.
- Huum... Era só questão de tempo esse reencontro de vocês. E pelo visto ele mexeu com você mais uma vez, né?
- Talvez. Ele só arrumou a bagunça que estava aqui dentro em relação a Lucas. Juntou as minhas certezas que eu tentava esconder todas as vezes em que dizia estar tudo bem. Posso confessar? Fazia meses que eu não transava com tanto tesão como fiz hoje.
- VOCÊS TRANSARAM? – perguntei num tom mais alto que o esperado, sem conseguir esconder minha surpresa. Mateus confirmou com a cabeça e um sorriso no rosto. – Ah, saquei! Essa história de ir conhecer o apartamento é o novo "vem ver um filme aqui em casa" – brinquei e ele riu me atacando com a almofada.
- Idiota! A ideia era realmente fazer uma visita. Estava devendo isso a ele desde que se mudou. Só que não deu pra resistir àquele cara moreno com a farda do exercito te pegando por trás de surpresa, né? – sorriu como quem lembrasse ainda cada pedaço daquela história.
- Safadinho! – devolvi a almofada num golpe entusiasmado. – Eu entendo que uma foda bem dada deixa a gente fora de órbita por um instante, mas você não tá pensando em substituir Lucas por Pedro, não, né? – perguntei levemente aflito.
- NÃO! Lógico que não. Preciso de um tempo para mim. Já tenho bastante tempo nessa relação e a última coisa que eu quero é entrar em outra.
- Acho bom. Nada contra Pedro, mas também acho que você precisa de um tempo pra reorganizar as coisas aí dentro. E se você tá mesmo decido a terminar com Lucas, siga seu coração, meu amigo – apertei sua mão, o que ele retribuiu com um sorriso contido e cheio de peso.
- Agora me conte sobre você e o namoradinho da capoeira. Quando vai ligar pra ele aceitando o pedido mesmo?
- Nossa! Só de pensar no assunto meu estômago dá um nó. Ai, eu queria ter tido coragem de responder na lata, sabe. Mas travei. Preciso ligar logo pra ele, né?
- Eu já teria ligado – respondeu apontando para o celular que estava do meu lado.

Dormimos depois de um filme bobo, pipoca e brigadeiro.  Na manhã seguinte liguei pra Vicente ainda com o nó no estômago, mas disposto a desatá-lo e transformá-lo num laço que o unisse a mim. Ele atendeu rapidamente, como se tivesse esperado por aquela ligação desde que nos despedimos no meio da noite. 

- Tô ligando pra dizer que eu te quero sim, que aceito e agora não tem mais essa de dar bola pra fotógrafo ousado no Farol – ele riu contente e, a julgar pela fala entrecortada, dava pulos de alegria, feito menino quando ganha um presente.

Flávio

Um comentário:

administrador disse...

Que delícia poder lê-los na madrugada entre um trabalho e outro. Meu abraço, meninos.