16 de abril de 2014

Na multidão de corações fantasiados

"- Acho que nunca serei capaz de entender seu ciúme doentio – falei sem medir as palavras.
- É tudo amor, só amor. E eu preciso dele para me curar – Lucas retrucou com a voz embargada.
- Amor nem sempre é sinônimo de cura. E amor quando não cura, corrói."


Quando me encontrei com Vicente já no final da tarde, todos os meus medos já haviam dado uma trégua, levantando uma bandeira branca diante da esperança que eu decidi depositar num novo relacionamento. As borboletas no estômago, cativas desde o primeiro descompasso do meu coração, agitavam-se extasiadas, ávidas pela liberdade iminente tão logo eu pudesse me livrar das antigas amarras e fizesse de Vicente meu único laço. Era difícil dizer qual dos dois estava mais feliz naquele abraço apertado na porta do meu prédio, com algumas pessoas de olhar enviesado e um carro que buzinava sem parar, figurantes de um filme prestes a começar, alheios ao roteiro ainda sem final. Aliás, era difícil imaginar um final, tamanha a felicidade que compartilhávamos; nossos corações acelerados, explodindo, saltitando serelepe. Estávamos em festa, assim como a cidade. Logo seria carnaval, e a energia que saltava dos nossos gestos combinava com o agito e a correria que se instaurava em Salvador. 

Convidei-o para entrar e pegamos o elevador. Mateus estava em casa e, finalmente, poderia apresentá-los. Ele já sabia muito sobre Vicente e o que ele passou a representar para mim nas últimas semanas. Vicente sabia o quanto Mateus era importante para mim, meu anjo da guarda aqui na Terra. 

- Mateus, corre aqui rapidinho! – chamei por ele assim que abri a porta. Ele estava no quarto vendo uma programação qualquer na TV. Apesar da quase pressa imprimida em meu chamado, Mateus veio a passos lentos, tentando arrumar os cabelos em desalinho.
- Esse aqui é Vicente, meu namorado – disse isso sem conseguir conter um sorriso – Vicente, esse é Mateus, meu melhor amigo de quem tanto falo.
- Olha, o famoso Vicente! Muito prazer, rapaz – Mateus se aproximou para cumprimentá-lo com um aperto de mão seguido de um abraço rápido, o que Vicente retribuiu dizendo um “fico feliz em conhecê-lo” abafado pela pressão dos braços de Mateus lhe contornando o tronco. – Trate de cuidar bem dele, viu?!
- Pode deixar – Vicente respondeu em seguida, me beijando as costas da mão que ele segurava. 

Ficamos sentados na sala, conversando trivialidades e planejando os dias de festa da semana que viria. Carnaval sempre me remetia a boas lembranças, desde pequeno; das festinhas à fantasia do colégio primário às ladeiras de Ouro Preto, o vai e vem de tantos foliões levemente embriagados esbarrando aqui e acolá pelas ruas de pedra. A Bahia só intensificou a alegria que brota a cada fevereiro e permanece por mais dois ou três meses depois que a folia acaba e as serpentinas são varridas da rua e do pensamento. Pela primeira vez, eu poderia esperar que a festa se estendesse, como um seriado que ganha mais e mais temporadas ao passo que ainda sobram motivos para seguir e mantê-lo no ar. Era assim que eu me sentia com relação a Vicente e, se dependesse de mim, motivos não faltariam. 

Fiquei feliz por ele e Mateus terem se dado tão bem. Conversavam como velhos conhecidos, Mateus com seu jeito um tanto espaçoso e Vicente de olhar e ouvidos sempre atentos, como se admirasse a espontaneidade e simpatia do meu amigo. Também me fazia feliz o fato de Mateus ter deixado de molho os últimos acontecimentos de sua vida e não fazer deles motivo para se afundar em comida, filmes e soluços noite adentro enquanto a cidade fervia. Era disso que ele precisava para se sentir vivo: uma boa dose de carnaval e ferveção – além do sexo incrível com Pedro que lhe atiçou a libido e todos os sentidos do corpo. 

Vicente passou o resto da noite comigo no quarto e dessa vez só foi embora depois que o dia amanheceu. Transamos como na noite anterior, com o mesmo tesão e intensidade, talvez dobrada ou triplicada. Nossa atual situação nos permitia total entrega e abusávamos da íntima liberdade que a palavra “namoro” proporcionava. Mesmo não tendo completado ao menos 24 horas desde o meu sim, sentia como se estivéssemos juntos por um tempo incalculável. 

Tomamos café da manhã com Mateus, que já estava acordado quando saímos do quarto. Mesmo depois de tantos anos morando juntos, ainda me admirava com o fato de, mesmo com olheiras matinais, os cabelos sem forma e as linhas do lençol impressas no rosto, Mateus ser um dos meninos mais lindos que eu já conheci na vida. “Você não fica feio nunca?”, brinquei quando o vi, e ele riu desconcertado. Ao meu lado, Vicente riu e parecia concordar com minha observação. 

- Bom dia, meninos! Acordados tão cedo assim. Por quê? Voltem pra cama, vão namorar – Mateus falava enquanto se servia de um café quente.
- Bom dia! – respondemos em uníssono. Vicente contornando a mesa para se sentar numa cadeira vazia ao lado de Mateus enquanto eu pegava leite, queijo e frutas na geladeira. – Bem que a gente queria ficar mais um tempo de preguiça na cama, mas Vicente tem orientação e eu preciso terminar aquele trabalho com a turma do Augusto, lembra? 
- Você ainda não terminou isso? – falou surpreso.
- Não, ué. É uma turma enrolada com datas e horários. Mas o importante é que hoje termino as fotos, corro pra editar tudo e entregar. Semana que vem eu não quero saber de trabalho.
- Acho bom mesmo. Aposto que seu namorado não vai ficar nada feliz se você tiver que ficar em casa enquanto o mundo inteiro tá correndo atrás do trio – disse olhando para Vicente que respondeu com um aceno de cabeça. – E nem eu – completou.
- Ok, senhores! – respondi levando a mão à cabeça em sinal de continência.

O fim de semana foi de correria, uma luta constante contra o relógio, compromissos e prazos. Pude terminar o trabalho solicitado por Augusto, que ficou muito feliz com o resultado. Depois que me despedi de Vicente na manhã de sábado, só voltei a vê-lo na tarde de domingo. Ele veio até o apartamento e teve que me observar dar os últimos reparos nas fotografias, muito admirado com minha habilidade com programas de computador que não faziam o menor sentido para ele. Nos horários em que eu me permitia um descanso, era ele que me dava trabalho com seus ataques sequenciais de beijos e carícias que me revigoravam. Até me demorava a voltar, só para dar atenção merecida a meu neguinho capoeirista, meu namorado. MEU NAMORADO! Eu ainda estava naquela fase boa de me perceber ligado a alguém que se ligava a mim reciprocamente. Alguém que me fazia ter vontade de gritar assim até que todos notassem minha felicidade por tê-lo. Vicente não dormiu comigo naquela noite. Foi embora prometendo me encontrar no dia seguinte, depois que se livrasse das leituras e orientações do mestrado.

Talvez pela ansiedade causada pela chegada do Carnaval, e apesar do caos já instaurado nas ruas da cidade – o triplo do caos já observado diariamente –, a segunda e a terça seguiram a passos lentos, cheios de preguiça, como se nos obrigassem a descansar para aguentar o ritmo acelerado que os próximos dias trariam. A meu pedido, Vicente se mudou para meu quarto durante esses dias. Seria mais prático e evitaria possíveis desencontros no meio da multidão acumulada ao longo da avenida. Mateus concordou com a ideia. Havia simpatizado com a figura de Vicente e levava na brincadeira seu status de “vela” sempre que nos flagrava em um beijo demorado no corredor ou no sofá da sala. 

O primeiro dia de carnaval nasceu virtuoso numa quarta-feira ensolarada de céu claro. Fomos acordados pelo vizinho, com o aparelho de som no volume máximo reproduzindo os hits do verão, axés dançantes com letras que grudam na mente na primeira escuta. O bombardeio musical também chegava pela TV e por meia dúzia de carros que passavam vez ou outra pela rua, desfilando, cada um, ao som de uma música diferente. No fim da tarde, já havíamos decorado boa parte das grandes apostas do ano e dançávamos descompassados no meio da sala. Exceto Vicente, que parecia ter nascido com os quadris em movimento e utilizava-se desse artifício da melhor maneira possível – na cama então...

Decidimos não gastar dinheiro em blocos de Carnaval. Essas coisas pediam um planejamento especial no orçamento, coisa que nenhum dos três havia feito e muito menos estava disposto a fazer qualquer tipo de sacrifício. Havia muito a ser aproveitado longe das cordas dos grandes trios. Os blocos à fantasia me despertavam o encanto e traziam à tona minhas lembranças dos carnavais em Minas. Seria divertido adicionar novos momentos ao lado de Vicente e Mateus aqui nas ruas e avenidas de Salvador. 

Improvisamos nossas fantasias com alguns badulaques e roupas que tínhamos em casa, nada muito elaborado. A diversão havia começado ali sem que ao menos nos déssemos conta, abastecida pelas latinhas de cerveja que entornávamos entre uma e outra troca de roupa. Ao final dos experimentos e ajustes, estávamos prontos para dar início ao nosso Carnaval particular. Dentro de cada um, assim imagino, a esperança de que bons ventos nos guiassem a partir dali. Vicente e eu usávamos suspensórios, camisa branca e shorts. No rosto, um bigode falso que Mateus fez questão de pintar com um pincel que encontramos de última hora. Ele vestiu seu kilt pela primeira vez, acompanhado de uma camisa abotoada e botas curtas. O kilt havia sido presente de um ex-namorado escocês e que foi embora há muito tempo. Deixou-o como lembrança de um relacionamento estranho que felizmente não fez meu amigo perder as estruturas; muito pelo contrário, foi um alívio ele ter partido para outro continente. 

Descemos para o circuito rindo à toa. Andava com Vicente de mãos dadas, ignorando os muitos comentários que ouvíamos pelo caminho. Mateus, levemente embriagado, respondia a cada um deles mostrando o dedo do meio seguido de um “vai se foder” claro e sonoro. As proximidades do Farol da Barra estavam uma muvuca enlouquecedora. Pessoas andando pra lá e pra cá, ambulantes, foliões apressados com seus abadás picotados grudados ao corpo e a polícia que, vez o outra, desfilava sisuda em fila indiana. Iluminação de festa das grandes, alegria de Carnaval. Seguimos atrás do trio acompanhando a maré de homens e mulheres fantasiados, entoando em coro o refrão “We are Carnaval, we are folia”, em um reflexo do estado de êxtase em que todos se encontravam. 

Pouco tempo depois, Mateus já pulava embriagado. Emendava uma cerveja na outra como se sofresse de uma sede incontrolável. De fato, tinha sede, e uma necessidade de afogar os infortúnios de um passado recente e levar as tantas dúvidas para um canto qualquer do esquecimento. Tentávamos controlar ele minuto a minuto para que não passasse do ponto, mas a dança descompassada já se confundia como trocar de pernas bambas e a fala já saía pouco inteligível.

- Mateus, vai com calma, cara – falei, repreendendo-o.
- Eu t-tô bem Fl-Flávinho. V-vai beijar n-na boca – respondeu entre soluços.

Encontramos com Dan, amigo de Mateus, logo mais à frente. Ele vestia uma fantasia que eu logo interpretei como um Deus do Ébano, sensual e altamente provocante. Ele surgiu na nossa frente depois de esquivar-se de um grupo de pessoas e abraçou Mateus de imediato. Também aparentava estar bêbado, porém num nível mais ameno e controlado. Conversaram em um cumprimento demorado, os rostos dos dois quase colados.

- Mateus, seu safado, como você some assim da minha vida? – perguntou com a voz elevada para se fazer ouvir.
- Eu n-nunca esq-queci d-de ning-guém, mas v-você sabe o q-que me prend-dia – Mateus respondeu catando as sílabas para formar palavras que saíam com dificuldade. 
- E cadê seu namoradinho ciumento? Não o vi por aqui, por isso vim falar contigo.
- E-eu tô liv-vre! Liv-vre de tud-do que me prend-dia! Liv-vre, Dan! – Mateus gritou e abraçou Dan com toda força que ainda reunia. Instantes depois, uma voz veio de trás e nos surpreendeu. Mesmo alterado, Mateus olhou sobressaltado.
- Isso, você tá livre. Livre pra foder com esse aí na hora que você quiser, não é, Mateus?

Lucas se aproximou do nosso grupo espumando de raiva, bochechas vermelhas e as mãos cerradas em punho. Olhava de Mateus para Dan repleto de ódio, ciúmes, angústia e tristeza, tudo junto. 

- Então é isso, Mateus? Você terminou comigo pra poder finalmente ficar trepando com esse filho da puta? – Lucas alterava-se um pouco mais a cada palavra. Seu tom de voz já chamando a atenção das pessoas ao redor.
- Filho da puta é você, seu viadinho mimado. Veja lá como fala comigo – Dan respondeu impaciente e, em seguida, voltou-se a Mateus que se apoiava em seu braço. –Tô indo nessa, tá? Não quero confusão com esse babaca.
- Pode ficar, pode ficar. Quem ta sobrando aqui sou eu – Lucas retrucou.
- Ol-lha Lucas, cala sua b-boca e vai s-se foder! – Mateus falou gesticulando com o dedo o indicador, enquanto se aproximava de Lucas.
- Agora é fácil não se importar, hein, Mateus? Você fodeu minha vida, disse que tava confuso, mas não demorou nada pra se jogar nos braços desse cara.
- Para de fal-lar o q-que você n-não sabe, L-Lucas! – Mateus seguiu na direção de Lucas num impulso repentino. 

Ele foi empurrado ao chão por um Lucas que transbordava de raiva e caiu de bunda, amortecendo o impacto com as mãos. Vicente e eu corremos para ajudá-lo seguindo o instinto contrário das pessoas que corriam da confusão que se formava. A sequência dos fatos que se seguiram durou pouco mais de dois minutos, mas foram de uma intensidade incomum que, depois de tudo, parecem ter existido em câmera lenta, assim como as imagens quando surgem em minha cabeça.

Dan partiu para cima de Lucas e lhe acertou um soco no olho que o fez cambalear. “Tá louco, cara, olha o que você fez!”, Dan gritou. Lucas se recuperou do soco e voltou-se contra Dan que se esquivou por um triz. Corri para segurá-lo antes que ele desferisse outro golpe em seu adversário. Ele era forte e eu tive trabalho para contê-lo. “Vai embora, Lucas! Quer ser preso, é?”. Ele esbravejou algum xingamento que eu não consegui entender e virou-se para Mateus, que se levantou num salto e partiu para cima dele. Antes que ele desferisse seu golpe frouxo no ex-namorado, Vicente o segurou pelos braços e o puxou. Um estranho conteve Lucas que se debatia incansável.

Convenci Dan a ir embora, prometendo tomar conta da situação. Ele partiu no meio da multidão, olhando para trás até nos perder de vista. Mateus chorava copiosamente, as lágrimas se confundindo com o suor do seu corpo agitado. “Leve ele embora daqui”, ordenei a Vicente, que logo obedeceu. Saíram apressados abrindo espaço entre as pessoas que olhavam curiosas. Lucas ainda tentava se esquivar do rapaz que o segurava.

- Olha aqui, você não cansa de fazer merda, não? Para de ser um babaca mimado e ciumento e deixa meu amigo em paz, Lucas. Já deu! Mateus não tem nada com Dan e mesmo que tivesse não seria da sua conta. Vocês terminaram, dá pra entender isso? E não é brigando que você vai conseguir ele de volta – falei sem me importar com as pessoas que ainda olhavam, aproveitando a segurança oferecida pelo estranho que ainda o detinha. Curiosamente, Lucas conteve sua agitação em uma respiração ofegante que aos poucos se abrandava. Já livre dos braços que o prendiam, começou a chorar, apoiando-se em mim como sendo seu único refúgio naquela avenida lotada.

Abracei-o instintivamente e deixei que ele chorasse tudo o que desejava. Todos os medos e inseguranças, incertezas e aflições. Comprei uma garrafa de água e fiz com que ele bebesse aos poucos até se acalmar por completo. Segui com ele à procura de um táxi, puxando-o pela mão. Ele não tinha condições de ficar sozinho no meio de tanta gente, no estado em que se encontrava. Eu precisava encontrar meu namorado e meu amigo, que sem dúvida alguma precisava muito de mim. 

Deixei Lucas no primeiro táxi que encontrei. “Desculpa por estragar sua noite”, ele disse. Respondi com um sorriso sem jeito e quase piedoso. “Deveria pedir desculpas por estragar meu Carnaval”, pensei. Depois de toda a confusão, não havia mais clima para festas. Não fazia ideia de como Mateus se sentia e torcia para que o álcool ingerido durante a noite o livrasse da dor de cabeça que seria lidar com tumulto instalado no seu coração.

Flávio

Um comentário:

administrador disse...

Carácolis, sei o quanto é difícil narrar qualquer ação violenta. Essa é uma das técnicas que não são muito simples para um texto narrativo. Vocês conseguiram bem, embora haja algumas impessoalidades inseridas nessas passagens: o seu adversário, o seu ex-namorado etc... Tentativa de evitar repetições e tornar o texto descritivo para o leitor. No mais, eu tenho gostado da organicidade com que têm entrelaçado um acontecimento narrativo no outro: o imaginário de Mateus e o de Flávio num ponto de intersecção que faz eclodir uma profusão de sentidos em quem lê. Ficção, bricolagem, catarse? Enfim... Literatura. Outro ponto positivo para a descrição detalhada dos elementos que compõem o cotidiano de uma pessoa, isso dá credibilidade à história contada, isso liga o leitor a ela. Muito bom, meninos. Agora preciso voltar a trabalhar. Abraços!!!