22 de maio de 2014

Arranhões provocam feridas ainda maiores

“Lucas Silveira: Não queria te machucar hoje. Nunca quis te machucar. Prefiro me ver quebrado a te ver sofrer. Nunca duvide do quanto eu te amo. Só não sei como viver tendo que te ver com outro. Se cuida. (04:32, pelo Facebook)”


Em questões de segundos todos os sorrisos se transformaram em raiva. Depois de ver Lucas me empurrar no meio de todas aquelas pessoas, eu só conseguia olhar para meu estado e entender que, talvez, fosse aquele o estado que eu merecia estar. Despedaçado, machucado, cheio de arranhões que eu mesmo provoquei, cheio de perdas que eu nunca soube lidar. Eu tinha raiva de mim, por não ter conseguido moldar o amor doentio de Lucas. Eu tinha raiva de Lucas, porque ele não tinha o direito de estragar a minha noite, muito menos a dos meus amigos. Eu tinha raiva do mundo, porque naquele exato momento eu apenas não continha o ardor no peito que vinha de toda aquela cena.

Sentado na calçada de uma das ruas paralelas ao circuito, as cenas de minutos atrás iam se remontando em minha cabeça aos poucos. Vicente estava ali do lado com uma garrafa quase cheia de água na mão e uma tentativa de me fazer melhorar da bebedeira. Eu revezava entre a cabeça abaixada entre as pernas e os olhos perdidos para canto nenhum. A cabeça cheia, o estômago revirava e o peito eu já não sabia como explicar o que ele sentia.

- Ele ainda gosta de você.
- Gosta? Daquele jeito doentio? Lucas não consegue pensar quando as coisas me envolvem – mal consegui terminar de falar e a raiva vinha novamente, como se o nome dele evocasse automaticamente todo o sentimento ruim que a vida tinha acumulado. – Eu preciso sair daqui.
- Você não tem condições de ir a lugar algum. Quer que eu te leve pra casa?
- Não. Não quero ir pra casa. É isso que ele queria. Acabar com minha noite, me fazer voltar pra casa e ficar chorando por ele. Não é isso que ele terá.

Levantei e uma tontura forte quase me faz voltar para onde estava. Vicente me segurou rapidamente pela cintura e ordenou que eu não fosse a lugar algum. Ele estava decidido a me levar pra casa, mas achou melhor minha tontura passar um pouco.

- Não entendo você, Mateus. Bonito, inteligente, cheio de caras aos seus pés e fica sofrendo por causa de um ex namorado que te ama demais. Segue sua vida com outro cara. Um que VOCÊ ame de verdade.
- O problema é que não dá pra decidir a intensidade do amor que a gente tem pelas pessoas, Vicente. Muito menos amar novamente de repente – falei encarando a garrafa de água em minhas mãos.
- Talvez existam outras formas de encontrar o amor... – Vicente falava e colocava suas mãos em meu ombro. – Formas mais passageiras, menos sólidas... o prazer secreto, alguns chamariam.

Olhei rapidamente para Vicente, que já havia se aproximado demais de mim naquele momento, e meus olhos o encaravam como quem estivessem tentando entender o que ele queria dizer com aquilo.

- Prazer secreto? – perguntei como quem pede uma explicação mais detalhada.
- Sim. Depois de anos preso em uma só cama, em um só corpo, em uma só relação, você precisa se redescobrir em outros corpos, cara. 
- É... acho que já estou melhor. E acho ainda mais que você precisa procurar Flavinho. A tontura passou e eu vou por ali – falei apontando para o primeiro caminho que eu vi e levantando rapidamente. 

Sai andando até perder Vicente de vista. Só então percebi que eu não tinha destino. Não queria voltar para a avenida, não fazia mais sentido sorrir naquele lugar. Não hoje. Foi quando resolvi encontrar abrigo no mesmo lugar que eu havia encontrado uma boa porta de saída. Andei um pouco e, ao chegar à portaria, falei que estava hospedado lá, mostrando a chave que encontrei no bolso. Não era necessário avisar. Cheguei até o prédio, subi até o segundo andar e bati na porta. Nada. Toquei a campainha e, depois de alguns segundos, a porta estava aberta.

- Mateus?
- Posso dormir aqui hoje?

Pedro estava só com um short velho vestido, mas pelo menos não tinha vestígios de sono em seu rosto. Deveria estar acordado ainda por conta do som forte das ruas.

- Po-de – falou como se não tivesse muita certeza do que estava fazendo. – Só preciso de um minuto. Tudo bem?
- Tudo bem.

Concordei e entrei no apartamento. Só então percebi que Pedro estava acompanhado. Eu realmente tinha uma noite destinada a fazer tudo errado. Pedi desculpa em voz alta e disse que já estava indo embora. Quando ia abrir a porta, Pedro me segurou.

- Para, Mateus. Você não vai a lugar nenhum. Você não tá bem. Sem condições de eu deixar você sair assim.
- Você está com outro cara no quarto, Pedro. Transando com ele, provavelmente. Eu que sou um idiota, não deveria ter aparecido sem ligar. Afinal, você tem sua vida, né?
- Não é isso. Eu conheci ele hoje, não é nada disso que você tá pensando, Mateus. Você é mais importante pra mim.

Por que eu tinha a mania de cobrar das pessoas esse afeto exclusivo de uma forma sutil? Por que eu fazia isso se eu nunca daria a essas pessoas o mesmo afeito, a mesma exclusividade que elas me pediam? Por que fazer Pedro se sentir culpado se, provavelmente, o grande culpado daquilo tudo era eu?

- É melhor eu ir.
- Você não vai a lugar nenhum, Mateus – o tom de voz de Pedro havia alterado e ele, realmente, estava destinado a não me deixar sair dali. Me puxou com força contra seu peito e, olhando em meus olhos, continuou aquilo que poderia ser uma bronca ou poderia ser apenas seu instinto fraterno. – Você vai fazer exatamente o que eu mandar. Vai entrar naquele banheiro, tomar um banho, vestir uma roupa limpa minha e dormir aqui. Amanhã você escolhe o que fazer, mas hoje você não tem outra escolha. Estamos entendidos?

Abaixei a cabeça e sorri baixinho. Era isso que eu precisava para terminar a noite. Alguém que gritasse o quanto se importava comigo, alguém que soubesse deixar claro que eu não tinha outra escolha a seguir, alguém que me amasse mesmo com todas as merdas que eu insistia em fazer.

Terminei o banho, vesti um short velho de Pedro e uma regata listrada, sequei meu cabelo com a toalha e, sem me preocupar com a aparência alguma, entrei no quarto para dormir. Quem estivesse naquela cama mais cedo, já havia ido embora agora. Só ficou o carinho antigo e a promessa de um cuidar do outro que havíamos feitos quando viajamos pela primeira vez juntos, ainda como colegas de quarto do colégio. Olhei para a gaveta aberta da cômoda e vi um anel de coco. Cheguei mais perto e confirmei que era o meu presente de anos atrás. Guardado, em uma caixinha aberta, com as nossas iniciais raspadinhas de leve. O riso veio junto com as lembranças daquelas tardes de sol, praia e leveza. Quando olhei para porta, Pedro estava encostado, me olhando.

- É... ainda guardo ele.
- Queria dizer que ainda tenho o meu guardado, mas, provavelmente, ele deve ter sumido quando me mudei de apartamento da última vez.
- Queria que algumas coisas tivessem se perdido com a mudança. Que o anel não fosse tão importante de ser mantido. Queria que as lembranças bastassem por si só, sem me forçar a querer que elas se tornem reais novamente – Pedro parou de repente, respirou, mas sabia que aquela não era a hora para aquela conversa. – Mas agora eu quero que você deite naquela cama e durma. Já chega de confusão por hoje, né rapaz?
- Confusão? Que confusão? – falei tentando desconversar sobre o que houve mais cedo. Mas a tentativa era extremamente em vão.
- Já avisei ao seu amigo de casa que você está aqui, inteiro e permanecerá inteiro. Então, acho bom você ir dormir.
- Vocês dois agora são amiguinhos, parceiros, ajudantes... melhor, minhas babás.
- Crianças precisam delas de vez em quando, né?

Rimos juntos e eu decidi que era melhor dormir. Pedro colocou um colchão no chão, apagou a luz e deitou com o fone de ouvido. A luz que entrava pela janela iluminava o seu peito descoberto e os seus olhos que pareciam pensar de tão intenso que brilhavam.

- Divide o fone comigo até eu pegar no sono?

Pedro me entregou um dos fones e alguma banda de pop rock internacional tocava. Mas antes mesmo que a segunda faixa terminasse, eu já havia desistido de continuar acordado. Algumas horas depois, meu celular toca e, em questões de segundos, eu parecia ainda estar dormindo, só que em um pesadelo. Não conseguia acreditar naquilo. Enquanto as lágrimas não paravam de cair, eu consegui explicar a Pedro o que estava acontecendo.

- Lucas sofreu um acidente!

Mateus

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