16 de julho de 2014

O surto

"- Você não precisa ficar, eu cuido dele – falei enquanto Pedro mal se movia na poltrona.
- Eu vou ficar, já passei tempo demais fora da vida dele – respondeu.
- Mas você não tem nada a ver com essa história! 
- Flávio, entenda, foi no meu apartamento onde Mateus buscou abrigo essa noite. Foi no meu braço que ele se apoiou no caminho até aqui. Eu quero ser esse abrigo e esse apoio que ele sempre procurou e nunca teve."


Quando deixei Lucas naquele táxi, a sensação era a de ter me livrado de um fardo pesado demais nas mãos de um desconhecido, tentando não me importar com os efeitos colaterais que certamente viriam: a ressaca da cachaça, a ressaca moral, a dor de um amor que não vingou. Não queria ser eu a cuidar de nenhum deles, Lucas não era problema meu. Na verdade, Lucas não era problema de ninguém a não ser dele mesmo. Nem mesmo de Mateus, coitado, que tanto se esforçou para manter tudo no eixo e levar nas costas um relacionamento onde o amor transbordou e afogou qualquer tentativa ou vontade de que algo mais desse certo.

Foi complicado refazer o caminho de volta ao local onde a briga toda aconteceu, na esperança de encontrar Vicente e Mateus por perto. Tentei manter os olhos atentos no meio de todo aquele vai e vem, já exausto e com o pensamento a mil. Mas todo meu esforço foi em vão. Os dois pareciam ter evaporado, e isso nada ajudava a acalmar o ritmo com que meu cérebro funcionava, fabricando suposições nada felizes. 

Sem sucesso, decidi, por fim, voltar para casa. Apesar de estar preocupado com Mateus, sabia que Vicente o protegeria. E foi Vicente quem logo avistei assim que dobrei a rua em direção ao prédio. Ele estava sentado na escadaria da entrada, os braços envolvendo as pernas, cabeça baixa, sem Mateus. 

- Vicente, o que você tá fazendo aqui fora? – perguntei surpreso.
- Flávio, até quem enfim você chegou. Tava preocupado já – respondeu levantando rapidamente, me abraçando um tanto aflito.
- Calma, eu tô bem. Mas me responde, por que você tá aqui fora?
- Ué, eu não tenho a chave do seu apartamento.
- Sim, mas eu deixei você com Mateus, ele tem a chave, oras. Cadê ele, Vicente? – perguntei já impaciente, minha preocupação se atenuando a cada segundo.
- Flávio, me desculpa, eu sei que você me pediu pra cuidar dele e eu tentei, eu juro. Mas Mateus saiu louco pela rua, não pude conter.
- Vicente, como você deixou que isso acontecesse, cara? Não viu o estado daquele menino? Meu Deus, custava ter um pouco mais de pulso firme e segurado ele com você? Por que não trouxe ele pra casa, Vicente? Puta que o pariu, os problemas dessa noite não vão terminar nunca! – falei sem conseguir disfarçar o nervosismo e meu desapontamento. 
- Cara, eu sinto muito, fiz o que pude. Me desculpa!
- Ele não disse nada sobre pra onde iria? – perguntei.
- Não, nada. Só levantou e saiu. 

Vicente percebeu meu desapontamento e preocupação, mas pouco fez para tentar me acalmar. Assim como eu, ele não sabia como agir. Subi as escadas e tomei o elevador. Precisava de um banho para poder pensar melhor e tentar, de alguma forma, encontrar Mateus. Vicente veio logo atrás, mas se manteve calado, talvez remoendo a culpa que eu queria lhe impor, talvez apenas pensando demais, assim como eu. Tentei esconder minha cara de decepção, mas nunca fui bom ator. Não trocamos palavra alguma enquanto entrei apressado pelo apartamento. Vicente sentou-se no sofá de onde me acompanhava com os olhos, apreensivo. Tomei um banho rápido e pus uma roupa limpa. “Para onde Mateus teria ido?”, eu me perguntava sem parar. Tentei ligar para ele, mas foi em vão, ele não atendia. Cada segundo de espera só aumentava minha preocupação.

Encontrei Vicente dormindo no sofá, visivelmente cansado. Já estava arrependido de ter me alterado sem nem ao menos saber se ele estava bem. 

- Vicente? Ei, acorda, meu bem! – sussurrei enquanto o sacudia de leve.
- Oi, Flávio, que foi? – acordou assustado, bocejando.
- Levanta, vai. Vem tomar um banho, tira essa roupa e deita ali na minha cama. 
- Tá, tudo bem. Mas pra onde você vai assim? – perguntou quando percebeu que eu não usava roupas de dormir.
- Eu ainda não sei onde Mateus foi parar. Preciso encontrar aquele menino, tô preocupado.
- Nada dele ainda? Já tentou ligar pro celular dele?
- Já, já, mas ele não atende, cai sempre na caixa postal.
- Ahhh... E por que você não dá uma olhada no quarto dele? Talvez você encontre alguma pista, sei lá, alguém que possa te ajudar a procurar por ele.
- Boa ideia. Vou dar uma olhada agora. E, ah, desculpe pela forma como te tratei há pouco. Eu sei que você não tem culpa. Mateus é teimoso. Quando bate o pé, não tem quem o segure. Depois de ter bebido então... – falei enquanto acariciava seu rosto. Ele me beijou com um selinho demorado. 
- Não precisa se desculpar, eu entendo sua preocupação – disse enquanto se levantava e seguia em direção ao banheiro. – Ei, e aquele amigo do Mateus que se mudou pra cá recentemente? Lembro de você ter comentado que eles estavam se falando. Será que ele não sabe de alguma coisa? – falou de repente, parando no meio do caminho.
- Quem? Pedro? – falei de súbito, enquanto uma fagulha de esperança se acendia.
- Isso, Pedro – respondeu com confirmação.

Dias antes, Mateus havia ligado do meu celular para Pedro e por sorte eu não apaguei o registro de chamadas. Disquei o número no meu celular e aguardei enquanto chamava. Uma voz grave atendeu do outro lado da linha.

- Alô, Pedro? Tudo bem? 
- Sim, é ele, quem fala?
- Pedro, aqui é Flávio, amigo de Mateus. Desculpa te ligar a essa hora, mas Mateus sumiu e eu queria sab... – Pedro me interrompeu de repente. Minha fala era apressada e aflita.
- Ah, sim, se acalme. Mateus tá aqui comigo.
- Tá? Ele tá bem? Cara, que alívio!
- Estamos indo pro hospital agora, Flávio. Não, nada com ele, não se preocupe. Acho que aconteceu alguma coisa com Lucas, aquele ex-namorado dele. Mateus recebeu uma mensagem e nem ele mesmo sabe dizer o que aconteceu realmente. 
- Mais essa agora! – esbravejei. – Pra qual hospital vocês estão indo?

Saí apressado depois de tentar explicar a Vicente o que Pedro havia me falado ao telefone. Peguei o primeiro táxi que encontrei e parti em direção ao hospital em que, segundo Pedro, haviam levado Lucas. No táxi, tentei cogitar possibilidades, começando a sentir o peso da culpa sobre meus ombros. Mas porra, o que eu ia fazer? Passar a noite cuidando de um cara que havia estragado minha festa? Culpa era a última coisa que eu queria ter que carregar na cabeça naquele momento.

Quando cheguei ao hospital, encontrei Mateus, visivelmente cansado, sentado em uma poltrona, e logo o abracei. Um abraço longo e apertado para sanar toda a inquietação que ele havia me causado desde que resolveu sumir pela cidade naquele estado. Pedro estava em um canto, nos observando de braços cruzados e com cara de quem acaba de receber mais um reforço em uma batalha difícil de travar. Fui cumprimentá-lo. Nos apresentamos com um aperto de mão e um tapinha cordial nas costas. Pedro era forte, de músculos rígidos. 

- Cara, o que aconteceu? Lucas já estava mais calmo e menos bêbado quando deixei ele no táxi há algumas horas – perguntei.
- Ele teve um surto assim que chegou em seu apartamento. O porteiro foi quem trouxe ele até aqui. Os vizinhos o ouviram quebrando tudo e gritando sem parar. Quando perceberam um barulho forte de vidro se estilhaçando e depois não ouviram mais nada, tiveram que arrombar a porta pra socorrê-lo. Encontraram ele todo ensangüentado no chão do banheiro, no meio dos pedaços do box que, pelo que parece, ele quebrou com um soco. Disseram que ele gritava o nome de Mateus e, por isso, um deles mandou mensagem pelo celular do Lucas depois. Era a única pessoa a quem eles pensaram em avisar na hora. 

Ouvi tudo com cara de incredulidade, me atentado a cada detalhe. 

- Mas o estado dele é grave? Como ele tá? – perguntei.
- Ainda não sabemos. O que sei é que ele se cortou muito com o vidro. Acho que escorregou e acabou batendo a cabeça, não sei bem. Quando chegamos, a equipe do hospital já havia levado ele pra sala de cirurgia. 

Tentei processar tudo muito rapidamente, tentando não imaginar o que mais poderia acontecer numa noite como aquela. Olhei para Mateus e percebi que ele havia dormido todo desajeitado na poltrona da sala de espera. Dormia feito criança, com um semblante calmo que nada refletia as turbulências das últimas horas. 

Por mais que eu houvesse insistido para que fosse para casa, Pedro resolveu ficar. Esperaria por notícias de Lucas e estaria ao lado de Mateus para qualquer eventualidade. Por essa atitude tão solidária, soube que Pedro era alguém por quem Mateus deveria zelar dali pra frente. O dia já começava a despontar em seus primeiros raios de sol que, vistos pela janela, pareciam nascer com todo vigor. Vicente havia telefonado sem que eu percebesse e, depois de avisá-lo de que tudo estava sob controle, tomei uma dose generosa de café. Pedro fez o mesmo. Era preciso acordar sem ao menos ter dormido.

Flávio

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