19 de julho de 2014

Fuga

"- Seus olhos parecem perdidos.
- Dizem que os olhos refletem a alma de alguém. Talvez seja só isso.
- Será que não é hora de começar a encontrar um caminho para ele?
- Talvez seja. Mas por que é tão difícil sair desse labirinto?"



Parece estranho dizer isso, mas o amor por Lucas veio se transformando em uma espécie de pena, um sofrimento amargo que misturava culpa e compaixão. Os últimos acontecimentos me faziam acreditar que a vida era uma verdadeira montanha russa. Quando tudo parecia começar a se ajeitar, alguma coisa despencava inesperadamente e mais uma ferida estava aberta. Algumas literalmente, outras sem tempo previsto para cicatrizar.

Já era quase meio-dia e eu não conseguia ter forças para levantar daquela cadeira de hospital e voltar a tocar a vida. Pedro permanecia ali, ao meu lado, com os olhos mais pacientes e a atenção necessária para que tudo fosse aliviando aos poucos.

- Mateus, você precisa comer alguma coisa.
- Não tô com fome, Peu. Meu estômago só não tá mais embrulhado que minha cabeça. Se eu comer alguma coisa é capaz de colocar tudo pra fora.
- Mas você precisa. Desse jeito, não sobrará forças nem pra levantar dessa cadeira – falou Pedro me mostrando as mãos em sinal de que era hora de ir a qualquer lanchonete tomar ao menos um suco.

Depois de remexer todo o suco de laranja com o canudo, consegui engolir um copo inteiro quase obrigado por Pedro. Voltamos para o hospital e um dos médicos que estava atendendo Lucas veio informar que os exames e procedimentos haviam terminado.

- Está tudo bem agora. Não foi nada grave, apesar da quantidade de sangue perdido. A maioria dos cortes foi superficial, mas, por conta da queda que ele sofreu, alguns foram mais profundos. Por sorte, nada foi perfurado. Ele já está no quarto descansado e, a depender da recuperação dele, à noite, já poderá receber visitas e conversar.
- Quando ele poderá sair daqui, doutor?
- Se tudo ocorrer bem, amanhã faremos novos exames e, no máximo em dois dias, ele estará liberado. Agora é melhor você ir para casa, descansar um pouco e, mais tarde, voltar para ver o seu amigo.

Amigo. Acho que essa era uma das definições que mais irritava Lucas quando alguém se referia a nós dois. Depois de saber que tudo ficaria bem, resolvi ir para casa tomar um banho. Pedro me convenceu a ficar na casa dele, já que estava sozinho e, assim, eu poderia descansar melhor. Flavinho já tinha feito tanto por mim, merecia o apartamento para aproveitar com Vicente, ainda mais que o Carnaval ainda nem estava na metade.

Passei em casa, dei um olá para os meninos, coloquei algumas coisas na mochila e fui com Pedro. No caminho, percebi o quanto a magia daquela cidade de máscaras e serpentinas havia se transformado em tristeza e melancolia. Não havia motivo para comemorar nem o sagrado, nem o profano. Minha cabeça parecia que ia explodir entre a noite perdida, as preocupações com o susto de Lucas e, principalmente, as incertezas quanto aos meus sentimentos. Não queria machucar Pedro, mas sua companhia tinha se tornado substancial naqueles momentos. Chegamos até seu apartamento. Depois de tomar um banho, colocar um short velho e deitar, Pedro trouxe uma xícara de chá e sentou ao meu lado.

- Muita confusão aí dentro, rapaz? – sorri com o riso que pudesse expressar o quão desesperado em me sentia em meio aquele caos.
- Você não imagina o quanto. Será que existe solução rápida para dores profundas? Não vale medicar com o tempo – rimos juntos. Brincar, às vezes, era a melhor solução.
- Olha, não sei como melhorar essa sua dor, mas, de repente, um cafuné pode ajudar a acalmar as coisas pelo menos por hoje.

Deitei no colo de Pedro e, enquanto ele acarinhava meus cabelos, senti como se o coração fosse desacelerando, como se o mundo voltasse a girar devagarzinho novamente, como se toda aquela bagunça não fizesse mais sentido. Não sei quando peguei no sono, só me dei conta que dormi o restante do dia quase todo porque acordei e já estava tudo escuro. Pedro ainda estava do meu lado, dormindo também, mas com um dos braços ao redor do meu corpo. Levantei com o maior cuidado para não acordá-lo, fui até o banheiro, escovei os dentes, coloquei uma roupa e sai para comprar alguma coisa para comermos.

Durante o caminho, meu celular toca: a mãe de Lucas.

- Oi, tia.
- Oi, meu filho. Tudo bem contigo?
- Tentando ficar. Como está o Lucas? Já acordou?
- Sim. Já está acordado, conversando e comendo direitinho. Na verdade, estou te ligando porque ele me pediu. Quer saber se você vem agora à noite vê-lo.
- Vou sim. Só preciso comer alguma coisa, tomar um banho e mais tarde chego aí.
- Tá certo. Se cuide também. Já basta um dos meus meninos doente.
- Pode deixar, tia. Um beijo e fica bem – desliguei o celular e fiquei pensando na sorte que tive com minha ex-sogra. Ganhei uma mãe quando conheci o Lucas. Acho que eu precisava não só conversar com Lucas, mas conversar com tia Márcia. Estava na hora de deixar ela por dentro de todo o problema. Talvez assim, Lucas conseguisse um suporte melhor para resolver sua loucura.

Voltei para casa de Pedro, e ele ainda estava dormindo. Preparei uma massa rápida para nós dois e fui até o quarto acordá-lo.

- Peu, acorda. Já tá tarde – balancei ele cuidadosamente e aqueles olhos apertados de quem acaba de acordar me olharam com um sorriso terno.
- Acho que dormi demais, né? – sorriu esfregando as costas da mão nos olhos. – Deveria está tomando conta de você e nem vi você levantando.
- Sou bom em fugir de mansinho.
- Ah é? – em menos de dois segundos, Pedro me puxou para a cama com seus braços fortes e me prendeu em cima do corpo. – Quero ver você conseguir fugir agora. – Pedro me prendia com a força necessária para não me machucar. Parecíamos dois meninos brincando de fazer cócegas um no outro. Depois de me debater sem sucesso, tanto pela força de Pedro, tanto pelo meu excesso de riso, acabei me entregando.
- Desisto! Não fujo mais. Sou prisioneiro agora.
- Não fala assim que eu penso besteira – Pedro me olhou com aquela mesma vontade do dia em que me segurou pelas costas vestido com a roupa do exército. Antes que eu fizesse besteira, fechei os olhos e avisei que o jantar estava pronto. – Não acredito que você fez comida.
- Macarrão com molho à bolonhesa. Ainda é seu preferido?
- Desse jeito, eu vou realmente te fazer meu prisioneiro.

Depois de jantarmos, avisei a Pedro que iria até o hospital ver Lucas, mas que era melhor ele ficar dessa vez.

- E se você precisar de ajuda? Sei lá. Vai que ele tenha outra crise de ciúmes... ou de raiva.
- Pedro! – repreendi-o, mesmo sabendo que ele só estava supondo coisas reais. – Eu preciso ajustar algumas coisas com ele e com a mãe dele. Preciso desse tempo sozinho, sabe? É melhor você ficar fora dessa. Você já me ajudou demais.
- Mas você volta para cá depois, certo?
- Volto e durmo aqui hoje.

Depois de estabelecido o acordo, Pedro aceitou melhor a ideia de desgrudar um pouco de mim. Peguei um táxi e, com algum esforço por conta de toda festa na cidade, consegui chegar até o hospital. Assim que vi Lucas acordado e conversando no quarto do hospital, consegui respirar mais aliviado. Apesar de toda raiva que eu senti, era impossível querer que alguma coisa de ruim acontecesse a alguém que esteve com você por anos. Dei um abraço em tia Márcia que, imediatamente, disse que iria procurar alguma coisa aberta para comer.

- Pensei que não fosse vir me ver.
- Você tá bem?
- Sim, o médico disse que vai ficar tudo bem mais rápido do que eu imagino. Só foram alguns cortes, alguns mais tensos, mas vou ficar bem – disse com os olhos que brilhavam por me ver ali. – Não foi dessa vez que você se livrou de mim – sorriu, mas logo ficou sério depois de ver que aquilo não tinha a menor graça.
- Lucas, você precisa se cuidar.
- Já estou me cuidando. Olha onde estou... em um hospital em pleno o Carnaval!
- Por escolha sua! E você sabe muito bem que eu não estou falando em relação a esse acidente. Você precisa cuidar desse seu... distúrbio – ficamos em silêncio. Eu, por não saber se aquela era a hora de dizer isso, ele, provavelmente, por perceber que as coisas não voltariam ao normal depois de toda a confusão.
- Me desculpa?
- Já te desculpei faz tempo. Mas cansei dos seus erros, da forma inconsequente como você age como alguma coisa se trata da gente. Gosto demais de você, Lucas, por tudo que a gente construiu. Você foi um dos caras mais importantes pra mim. Mas você tem dado um fora atrás do outro, e isso só vai desmoronar aquele tanto de lembranças maravilhosas – percebi que uma lágrima descia de seus olhos, que ele limpou com tamanha rapidez.
- Eu não queria que fosse assim. Eu sempre tive o que eu quis. Pode ser só uma fase ruim, Mateus – não contive e ri. Não sabia se era pior ouvir a esperança naquilo tudo ou se o capricho de um menino mimado que não sabe recomeçar quando chega ao fim.
- Lucas, amor não é o próximo presente que você sonha em ganhar. Não dá pra ter sempre o que quer e como quer. Não é só uma fase ruim, é só uma nova fase, que precisa chegar pra nós dois. Recomeçar, construir novos planos depois de olhar e ver que tudo ruiu, que nada é mais o que se espera. Você precisa cuidar de você agora.
- Vou tentar. O psicólogo disse que eu havia melhorado. Mas ontem não deu pra segurar depois de te ver com aquele filho da mãe – esmurrou a cama assim que terminou de dizer, enquanto expulsava dos olhos todo o sentimento de raiva.
- Esquece Danilo agora. Nem tem motivo pra envolver ele. Mas preciso que você me escute agora – falei me aproximando dele. – Nosso namoro acabou. Eu nunca vou te desrespeitar, nem fazer nada que machuque seus sentimentos intencionalmente. Tudo isso porque eu respeito o que a gente viveu. Mas acabou. Não existem mais motivos pra você deixar de pensar em você pra pensar em mim. Na verdade, nunca existiram. Eu acho melhor a gente se afastar agora. Não manter contato por um tempo até você se recuperar.
- Não, Mateus! NÃO! Não some, cara. Sério. Eu vou melhorar...
- Para de crise de novo – falei puxando sua mão e olhando diretamente em seus olhos. – Tia Márcia vai cuidar de você melhor do que eu. Não vou sumir pra sempre. Eu volto. Mas você precisa que eu saia da sua vida de alguma forma. Se não é pra ser por decisão sua, será por força minha – dei um beijo em sua mão e levantei para ir embora, quando ele me puxou.
- Me dá um abraço antes de ir? O último – aquilo partiu meu coração. Segurei o choro com a maior força que eu tinha e o abracei. Acarinhei seu cabelo e dei um beijo em sua testa. Limpei a lágrima que escorria e só consegui pronunciar duas palavras antes de ir.
- Fica bem!

Saí do quarto acabado. Chorei tudo que segurei enquanto caminhava pelo corredor, quando encontrei tia Márcia vindo em minha direção.

- O que aconteceu, meu filho?
- Tia, senta aqui – sentamos em duas poltronas no corredor. – Quero que a senhora me prometa que cuidará do Lucas com mais carinho e mais atenção ainda. Promete?
- Claro, meu filho. Lucas é o bem mais precioso que eu tenho. O que aconteceu ontem foi um descuido. Ele disse que iria dormir com você, e eu acabei indo para casa de minha irmã fora da cidade.
- Não é por ontem. Claro que também é por coisas como ontem. Eu e Lucas terminamos já tem alguns dias. Nossa relação estava complicada por conta das crises de ciúmes que Lucas vinha tendo. Brigas com amigos meus, discussões rotineiras... ontem chegou ao exagero quando ele me empurrou no meio da rua na frente de todos os meus amigos – fiquei em silêncio por um tempo, como se a cena fosse sendo remontada aos poucos em minha cabeça.
- Meu filho, eu não sabia de nada disso. Lucas me disse que vocês estavam bem, que iam até viajar novamente para uma lua-de-mel de namorados.
- Lucas está doente, tia. Desculpa a sinceridade, mas é isso que está acontecendo. Ele precisa de tratamento, de cuidado. Muita coisa aconteceu na vida dele. Talvez um dia vocês sentem e conversem sobre isso com mais calma. Talvez ele consiga se abrir com a senhora, como se abriu comigo. Mas cuida dele enquanto eu estiver fora.
- Pra onde você tá indo?
- Tô saindo temporariamente da vida dele. Ele precisa da minha ausência para se encontrar, se tornar inteiro novamente. Não vou estar longe, mas não me farei presente mais. Talvez passe um tempo fora. Vou trocar o celular e sumir um pouco. Acho que também preciso me encontrar, sabe? Descobrir quais são os próximos passos, os próximos planos... reconstruir o que esfarelou aqui dentro.
- Meu filho, a vida tem o dom de tornar novo aquilo que a gente pensou nunca mais servir. Eu vejo que aí dentro tem uma coisa tão preciosa, mas tão preciosa, que precisa de descanso para brilhar novamente. Você vai encontrar mais rápido do que imagina esse caminho em busca do novo. E acredite, quando o novo chegar, vai vir com um saber ainda mais valioso que só foi capaz por conta de todos os farelos que estão alojados aí dentro. Espero ver esse rosto sorrir novamente. Você fez meu filho feliz por tanto tempo e de tantas formas, que acho que aprendi a te amar como um filho.

Acho que não havia mais lágrimas para chorar e nem palavras para agradecer àquela mulher que me deu o melhor dos confortos naquela hora. Abracei-a como quem abraça querendo gritar muito obrigado e, em seguida, dei um beijo carinhosamente em suas mãos.

- Lucas tem sorte de ter uma mãe como a senhora.

Saí do hospital com a sensação de dever cumprido mais uma vez. Só que agora era diferente. Eu daria adeus a todas as formas de me encontrar com Lucas. Durante o caminho para casa de Pedro, resolvi que precisava de uns dias meus, longe de tudo. Já tinha alguns dias de folgas acumuladas na agência. Talvez essa fosse a melhor hora para usá-las. Liguei para o chefe imediatamente, mesmo sabendo que era Carnaval, e conversei brevemente com ele pelo telefone, alegando alguns problemas com minha família. Ele disse que tudo bem, que eu poderia ir e ficar quanto tempo fosse preciso.

Assim que cheguei na casa de Pedro, sentei na cama e, cabisbaixo, respondi sua pergunta sobre como foram as coisas.

- Eu vou embora. Por um tempo.
- Como assim você vai embora, Mateus? E sua vida aqui?
- Minha vida aqui está de pernas pro ar. Preciso encontrar uma forma de arrumá-la.
- E longe você vai arrumar?
- Não. Mas vou ter o espaço necessário para pensar em como dar um jeito nisso.

Mateus

Um comentário:

Rafael disse...

Eu e todo mundo estamos sofrendo com a ausência desses dois nas nossas vidas! haha por favor, voltem logo.