21 de janeiro de 2014

Solar

"- Mateus, existe um buraco de alguns dias entre você e eu. Precisamos conversar. Um beijo, Flavinho – fixei o bilhete na porta da geladeira antes de sair. Era o terceiro e a coleção só aumentava."


Desde o dia em que descobri na fotografia uma paixão pra vida inteira, criei o hábito e o exercício de fotografar o pôr do sol. Mesmo menino, sem entender dos mistérios da natureza nem do ciclo natural da vida, aquela bola de fogo no céu chamava minha atenção e estimulava minha imaginação sempre tão fértil. Lá em Minas, papai tem um sítio um pouco afastado da cidade. Lembro que, quando criança, vez por outra ele me levava para passar o fim de semana lá por dois motivos (assim imagino). O primeiro, e que mais satisfazia meu instinto de menino sapeca, era descarregar as energias respirando um ar bem mais puro que o da cidade, que apesar de ser pequena, já tinha lá seus carros soltando fumaça pra tudo quanto é canto. Tomar banho de rio, comer fruta do pé. Pra isso eu contava com a companhia de Rita e de Moisés, meus primos por parte de mãe. Papai e mamãe não tiveram outros filhos e, por isso, papai depositava em mim a esperança de que o segundo motivo das minhas constantes idas ao sítio também me alegrassem. Ele queria que eu tomasse gosto por cuidar da terra e dos bichos. Que me interessasse pela rotatividade do adubar, plantar, nascer e colher da plantação. Homem da terra, papai, que há muito tempo acreditava no dito “filho de peixe...”

Mas se o cuidar da terra não me encheu os olhos, algo tão mágico quanto o nascer de uma planta tomou conta e guiou meus passos pra tudo aquilo que viria depois: o cuidado com as palavras, com as cores, com o congelar do mundo. Mamãe gostava de me ver largado pelo chão da casa, perdido no universo que Monteiro Lobato criou e que parecia tão meu a cada passar de páginas. Mamãe, que era professora, sentia orgulho, assim como papai, que só reclamava da bagunça que eu fazia com os livros espalhados por todo canto. Quando ganhei minha primeira câmera fotográfica, dada pelo tio Nestor no natal de 99, minha vida virou uma festa. Ainda guardo comigo os registros daquela noite e de todas as poses de mamãe no dia a dia. Na sala vendo tevê, no quintal molhando as plantas, na cozinha preparando o almoço. Graça maior era revelar os filmes e ver a reação das pessoas que diziam “esse menino leva jeito”, “minha ‘nóssinhóra’, quem mandou você fazer isso, menino?!” e por aí vai. Gastava minha mesada toda com isso. Era melhor que comprar doce.

Fotografava gente, flor, bicho e o sol, o que nascia e o que dava espaço para a noite. No sítio de papai tinha uma serrinha que por muito tempo se tornou o meu lugar preferido de toda a infância. Dava pra ver o sítio inteiro e um pedacinho da estrada que corria pra cidade. Mas era no fim do dia que tudo fazia sentido. O sol dizendo adeus, ardendo de leve num brilho incomum. E eu vendo tudo pela lente da minha camerazinha que disparava ao toque do meu dedo. Mesmo depois de grande, já com outras ocupações, nunca deixei de ir ao sítio pra fotografar o sol se pondo. Era mais que um hobby, era meu jeito de encontrar as respostas para as perguntas do meu coração.

Quando me mudei para Salvador, tive medo de que, com a mudança da rotina, da cidade não sei quantas vezes maior que a minha, das pessoas desconhecidas, eu tivesse que abandonar meus hábitos. Mas Salvador se revelou para mim como uma caixa de surpresas, um labirinto gigantesco cheio de possibilidades a cada dobrar de esquina, de tantas cores e paixões. Fiz do Farol da Barra o meu cantinho do sítio de papai, meu alto da serra da Bahia, onde o sol posaria sempre que necessário para minhas lentes, por vezes, tão carentes de brilho e atenção.

Sempre que dava, largava as tensões de tantas provas, do estágio que não corria bem, das horas no ônibus lotado (coisa que mudava meus ânimos todos os dias e fazia sentir saudade de casa, com tudo tão pertinho, a escola, a padaria, o mercadinho). Ver o pôr do sol ali no farol era sim, meu refúgio na cidade que me adotou como filho. Hoje foi um desses dias em que nada nem ninguém era capaz de afagar meu coração e tirar com a mão toda preocupação que por hora me afligia. Mateus estava dormindo e eu não quis incomodar. A situação com o Lucas não anda muito legal e pelo visto ele havia aprontado mais uma das suas. Mateus não costuma voltar cedo de festas.

Desci até o farol levando minha câmera na mochila. Faltava ainda algumas horas para o sol se pôr e eu resolvi andar um pouco pela orla e tomar uma água de coco. Lembrei do Rafael, do seu sotaque carioca e que, provavelmente, nunca mais nos veríamos. Melhor assim. Esbarrei com uns dois conhecidos e troquei alguns segundos de prosa. Quando cheguei no farol, apinhado de turistas e vendedores, sentei no mesmo lugar de sempre, empunhei a câmera e me deliciei com o adeus silencioso do sol, respirando fundo a cada clique, repondo as energias para mais uma semana. Era um sábado com cara de domingo e ritmo de feriado.
A alguns metros, uma roda de capoeira roubou minha atenção com o som do berimbau e as cantigas da luta disfarçada de dança. “Eu deixei com Menininha pra ela abençoar/Amanhã às sete horas/Pra Bahia eu vou voltar”, cantavam em coro. Somente homens compunham a roda, todos negros com suas roupas brancas em contraste. Meia dúzia de pessoas acompanhava o movimento dentro da roda, admirados com tamanha destreza e precisão. Me juntei a elas, compartilhando o mesmo fascínio.

Acompanhei a batida das palmas que seguiam o ritmo frenético de um instrumento de percussão, cantei o refrão que se repetia numa canção e fotografei o grupo, mesmo sem saber se era permitida tamanha intromissão. Ao final da apresentação, seguida dos aplausos dos espectadores que haviam se multiplicado, guardei a câmera e fui cumprimentar os homens da roda, ofegantes, com a roupa colada ao corpo suado. “Parabéns pelo trabalho”, eu repetia, enquanto respondiam com um obrigado e um sorriso aberto. Um deles emendou uma conversa tímida. De estatura mediana, cabelos crespos trançados rente à cabeça, feição jovial dos seus aparentes 23 anos e corpo definido pelo exercício da luta, na contorção dos golpes coreografados. Um jovem bonito, de olhar vivo e observador.

- Eu vi você fotografando a gente. É profissional? – perguntou.
- Não, não. A fotografia é um hobby mesmo. Sou publicitário. Mas eu tenho um site onde posto minhas fotografias. Se quiser dar uma olhada, é nesse endereço aqui. – tirei um bloquinho de anotações da mochila, anotei o endereço e lhe entreguei.
- Flávio?
- Isso. Prazer – disse, apertando sua mão mais uma vez.
- Vicente – respondeu intensificando o aperto de mão de uma forma sutil.
- Dê uma olhada lá. Prometo que mais tarde posto essas aqui – fiz um movimento com a câmera. – Consegui fotos incríveis de vocês.
- Muito obrigado. Até mais.
- Até! Mais uma vez, parabéns.

Vicente voltou a passos apressados ao encontro dos amigos. Era ágil e habilidoso, coisa que eu havia notado quando figurou no meio da roda. Era de uma simpatia comovente, realçada pela timidez que não o diminuía.

Segui caminhando na direção de casa, driblando os postes e as pessoas que vinham pela calçada no sentido contrário ao meu. A passos lentos, demorei mais que o estimado. Mateus não estava mais em casa quando cheguei. Tomei um banho e resolvi esperá-lo, na esperança de que pudéssemos conversar mais tarde. Aproveitei esse meio tempo para publicar as últimas fotos. Uma música lenta vinha do apartamento ao lado. Apesar de não identificá-la nas frases distantes, a melodia me acalmou e me ninou despretensiosamente. 

Flávio

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