21 de agosto de 2014

Promessas

"- O coração nunca se esquece de quem um dia fez chama dentro dele – falei.
- E será que você deixa eu reacender essa chama aí dentro, mesmo que só hoje? – falou, e seu sorriso pareceu o mais feliz."


Meus olhos ardiam enquanto Vicente permanecia parado em minha frente, calado. O silêncio era sua defesa. Talvez esperasse que eu fizesse cena, cuspindo nele toda a decepção que já me embrulhava o estômago ou que partisse para cima dele. Talvez ele só esperasse que eu permanecesse sem reação, tentando engolir o choro para fingir que não me importava, e que a dimensão daquilo não me abalava tanto assim. Mas a realidade batia no meu rosto sem pena, mostrando a verdade de uma relação que horas atrás se mostrava viva e cheia de cores e, agora, afundava em ritmo acelerado num profundo breu. Quando consegui juntas as palavras na minha boca, minha voz soou firme, sem vacilar.

- Vai embora daqui – falei.
- Flávio, calma, eu posso explicar – Vicente falou, reagindo à minha ordem.
- Explicar o quê, Vicente? Que você é um doente obcecado por cheirar a cueca do melhor amigo do seu namorado? 
- Eu só... Eu só queria... 
- Você só queria saber que cheiro tem o pau do Mateus pra se imaginar com ele enquanto fode comigo, é isso? Qual é a tua, Vicente? 
- Calma, Flávio, não é bem assim...
- CALMA O CARALHO, VICENTE! VAI EMBORA! ME ESQUECE!

Ele não tinha argumentos e eu já havia esgotado todas as forças para suportar a situação. Explodi num choro incontido enquanto atirava no corredor as roupas que Vicente guardava em meu quarto. Fechei a porta e me tranquei. Vicente batia na porta, implorando uma conversa, pedindo desculpas entre soluços de um choro que beirava o arrependimento.

- Flávio, por favor, vamos conversar. Não faz isso, vamos resolver isso – implorava, com incessantes batidas na porta.
- Resolver o quê? A única coisa que eu quero é que você vá embora. Se quiser, leva a cueca de Mateus com você. Depois deixo uma de presente pra ele. Até assino por você, se for o caso.
- Para, não faz assim, Flávio. Abre essa porta, vai – Vicente insistia do outro lado da porta.

Destranquei a porta e dei de cara com ele. Sentia sua respiração ofegante perto de mim. Ele me encarava com olhar de piedade.

- Eu não quis te magoar – falou.
- Eu não tô magoado, Vicente. Eu tô decepcionado, assustado, morrendo de raiva de você. Você me machucou de um jeito tão absurdo, que tá doendo demais aqui dentro. Puta que o pariu! Mais cedo, você me disse que só retribuía o que eu te dava. Que foi que eu te fiz, hein? Doía em você todo o carinho que eu te dava? Por acaso meus beijos e toda minha vontade de te fazer feliz rasgavam seu peito desse jeito que você tá fazendo comigo agora? 

As palavras saltavam da minha boca e esbarravam num Vicente de olhar envergonhado que não me comovia. 

- Cara, eu fui fraco. Me perdoa! Não sei onde eu tava com a cabeça. Eu sei que não tem explicação, mas...
- Desde quando você cultiva esse fetiche por Mateus? – interrompi sem rodeios.
- Flávio, esquece isso, vai. Eu prometo que isso não vai mais acontecer. Cara, eu te amo.
- Vicente, menos! Se amor dependesse de promessas, todo casamento seria eterno – ironizei.
- Você não quer mesmo me ouvir, não é?
- Eu não quero e nem preciso te ouvir. Que valor tem sua palavra agora? Por favor, pegue suas coisas e vai embora daqui.
- Flávio... – Vicente persistiu, tentando acariciar meu rosto. Me esquivei. 
- TCHAU, VICENTE! 

Gritei, fechando a porta com força. Ele precisou se afastar para não se machucar. O que seria pouco, já que qualquer dor física que eu provocasse nele não chegaria perto do que eu estava sentindo naquele momento. Meu coração estrangulado não conseguia respirar, nem pedir socorro, mas eu queria mesmo era gritar, pra aliviar a dor de um amor que morreu ainda semente.

Ouvi Vicente deixar o apartamento batendo a porta devagar. Fiquei deitado na cama, molhando o travesseiro que também abafava meu choro e um grito ou outro que escapava da garganta. Quis ligar para Mateus e contar tudo, mas achei melhor poupá-lo disso, pelo menos por enquanto. 

Minutos depois, quando dei por mim, estava andando pela rua, um tanto sem rumo, sem me importar com os perigos da cidade. Nada me preocupava enquanto, na cabeça, eu remoia os pensamentos que já se embaralhavam, confusos e sem nitidez. Esbarrava com as pessoas voltando da folia, me olhando de canto e passando curiosas. 

Engraçado é que, nessas horas, o sentimento de solidão parece ser maior que a nossa capacidade de enxergar os fatos como apenas mais um momento ruim que vai pra lista de tantos outros já vividos. De repente, você se vê dentro de um buraco fundo, cavado por um filho da puta que te jogou lá dentro sem a menor consideração.

“Se toca, Flávio, você é maior que isso”, eu dizia pra mim mesmo enquanto caminhava em direção à praia. Era o lugar onde eu buscava conforto quando a corda bamba que é a minha vida se partia ao meio e eu me via estatelado no chão. A areia branquinha massageava meus pés, enquanto a brisa enchia meus pulmões de calma. Claro que, em meio à cidade em festa, eu não estava sozinho, mas achei um cantinho só meu, longe da gritaria embriagada dos foliões ao mar. 

Nunca fui muito de acreditar em forças superiores, mas ali, sentado na praia, rezei para um deus que não tinha nome, mas que certamente olharia por mim. Minhas preces, no fim das contas, nada mais eram que juras secretas que guardei no meu coração; promessas que fiz a mim mesmo num ritual muito particular, onde as duras verdades que a vida havia imposto serviriam de ponte para algum lugar ainda sem forma ou endereço, mas onde estaria o acalanto e o amor dos quais eu tanto necessitava?

Vi o dia amanhecer ali na companhia do mar. Sentia o celular vibrando dentro do bolso, mas resolvi ignorar quando percebi que as insistentes ligações eram de Vicente. Aos poucos, à medida que o sol ganhava força, brilhando forte no alto, as pessoas começaram a ocupar a praia, revigorando as forças para mais um dia de folia. Atirei meu corpo ao mar pra exorcizar meus medos e toda urucubaca de um carnaval atípico. 

Passei o dia na rua e já era noite quando voltei pra casa. Encontrei um bilhete de Mateus grudado à geladeira; ele havia viajado. Passar um tempo com a família talvez fizesse bem para ele. Eu dormi depois de um banho quente e acordei com uma mensagem no meio da noite. Minha prima Aline estava na cidade e queria me ver. Na verdade, ela queria mesmo era me levar à ruína total e deixou isso claro ao dizer “QUERO MORRER DE TANTO BEBER” – assim mesmo, em caixa alta – no final da SMS. 

Aline sempre foi muito porra louca, mas sabia disfarçar muito bem esse seu lado espevitado sempre que fosse preciso – nas festas de família, por exemplo. Não era a primeira vez que ela vinha a Salvador. Tinha amigos aqui e até já morou um tempo na cidade. Sempre que aparecia, fazia questão de me ligar para sairmos juntos e colocar em dia as novidades da vida. Aceitei o convite. Tinha prometido a mim mesmo não me deixar abater. 

Encontrei Aline num barzinho agitado da Orla da Barra. Os olhos muito verdes sempre foram o charme maior de Aline, assim como o corpo cheio de curvas. Era um mulherão. A gente se dava muito bem desde pequenos, mesmo não tendo sido criados juntos e só nos vendo nas férias do meio do ano e no Natal. Ela soltou um gritinho agudo quando me viu e se atirou em mim em um abraço apertado. Retribuí o gesto sussurrando no seu ouvido.

- Já ta bêbada, sua louca?
- E quando eu não estou, Flavinho? – respondeu numa gargalhada gostosa.

Sentei com ela na mesa de onde ela havia levantado. Aline me apresentou a Bárbara, que tomava uma cerveja, também já bastante animada e atenta ao movimento no bar. Bárbara era negra, cabelos cacheados, pele macia e perfume adocicado. Fui logo atacado com perguntas sobre minha vida, as quais respondi bem superficialmente, ignorando o “caso Vicente” e todas as atribulações das últimas 48 horas. Ficamos ali conversando trivialidades, gritando as palavras um para o outro em uma tentativa de nos fazer ouvir. 

Certo momento, percebi Aline acariciando a mão de Bárbara de uma maneira especial e, instantaneamente, porém, tentando disfarçar minha surpresa, a encarei com um olhar de interrogação. Ela entendeu e, sorrindo, como se dissesse “ah, seu bobo”, respondeu em alto e bom som.

- A gente tá se pegando, Flavinho! Arrasei, não foi? Pode dizer – e puxou Bárbara para mais perto, dando um beijo em seu rosto.

Não pude conter meu estado de quase choque. Aline nunca foi de se impor limites e “experimentar” era quase seu lema de vida. Mas nunca imaginei que a mesma prima que se orgulhava da sua extensa lista na coleção de “homens da minha vida” – e seus respectivos centímetros penianos – pudesse, um dia, dar início a uma coleção de peitos e xoxotas. 

O movimento na rua havia triplicado quando saímos do bar. Aline me convenceu a entrar em um dos blocos que estava na concentração quando avistou um grupo de cambistas vendendo abadás, loucos para se desfazerem da mercadoria. Pechinchamos um pouco até conseguirmos um bom desconto. O poder de convencimento de Bárbara superava qualquer argumento dos vendedores, enquanto Aline mordiscava os lábios em uma súplica silenciosa e provocante. Eu apenas ria da situação. Os homens até ganharam um beijo no rosto após desistirem de continuar qualquer tipo de negociação com as duas. Todos satisfeitos, partimos para a folia.

No início, ao perceber que as duas não se desgrudariam uma da boca da outra durante todo o circuito (e além dele), imaginei que talvez pudesse ter sido essa uma péssima ideia. Mas algum tempo depois eu já havia beijado três bocas e apertado algumas bundas que passaram apressadas. Ah, o Carnaval! 

As meninas não me deixaram parar de beber e eu não fiz objeções. Era mais fácil assim, com o álcool correndo pelas veias e a cara de pau ocupando o espaço da timidez. Com música alta, esbarrões e pegação por todos os lados, acabei me perdendo de Aline e Bárbara. Tentei não me afastar muito do nosso único ponto de referência, mas depois de tantas latinhas de cerveja, vodca e uma bebida estranha com nome estranho, era meio difícil ter referência de qualquer coisa, quanto mais de alguma localização no meio de tanta gente. 

Senti então que alguém me puxou pela mão, abrindo espaço entre as pessoas para se aproximar de mim. Mesmo já um pouco tonto, reconheci aqueles olhos claros e aquele corpo definido que me abraçava com força. Era o menino do Rio. 

- RAFAEL! – gritei, tamanha foi a minha surpresa.
- E aí, Flavinho! Que bom que não se esqueceu de mim – ele disse com um sorriso que reacendeu em mim boas lembranças.

Flávio

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